quinta-feira, março 26, 2009

Foto de Aline Vedana / FABICO * UFRGS

MARTE

Caio Fernando Abreu

Era sempre verão quando alguma coisa acontecia. Talvez porque no verão as pessoas tiravam cadeiras para fora de casa e, pelas calçadas, olhando estrelas, falavam de tudo que não costumavam falar durante o dia. Ele tinha aprendido o jeito de se confundir com as sombras, sem que o notassem. Tinha-se tornado uma sombra à espreita do que nunca era dito claramente, à beira do momento em que não haveria mais nenhum segredo a descobrir e a vida, então, se tornasse crua e visível, por tê-la tocado ele mesmo, não por ouvir dizer. Frase após frase, ficou ouvindo:

- E a filha da Lucy, tu já soube?

- Quem, a Beatriz?

- E a Lucy tinha outra filha, criatura? Perguntei por perguntar. Que aconteceu?

- Pois diz que morreu, em Porto Alegre.

- Mas não me conta, criatura. Quando?

- Ontem, tresantontem. Não sei direito. Vão enterrar lá mesmo.

- Que barbaridade. Tão novinha.

- Pois é. Mas uma perdida. Não tinha nem dezesseis anos.

- Um guria bonitinha. Meio espevitada, mas jeitosinha.

- Diz que morreu grávida.

- Pelo amor de Deus, não me conta.

- Que sabia que ia morrer. Aí deu um desgosto, emputeceu de repente.

- Mas quem era o pai?

- Deus é que sabe. Só aqui no Paço, retoçou com todos. O Cacá da Zulma, o Luizão da Lia, o Eira do Otaviano. Fora os de lá, que ninguém sabe.

- Que coisa de louco.

- Diz que a cabeça rachou toda antes de morrer.

- Como, rachou?

- Pois rachou, ué. Que nem porongo no sol. A tal da doença.

- Mas a pobre da Lucy. Primeiro o marido, depois a filha.

- Cada vivente com a sua sina.

- A pobre da Beatriz.

- Que Deus a tenha.

- Escuta, teu filho não tinha um rabicho por ela?

- Tinha? (Tanto tempo hoje, a garrafa de vinho quase vazia e a voz travada de Marjanne Faithfull cantando As Tears Goes By, tantas dores novas, e tão inesperadas, tivesse visto de lá, naquele tempo, com aqueles olhos que nunca mais teria.) Tinha tido mesmo - tão grosseiro, como se diz? - um rabicho por Beatriz? Não sabia responder direito.Deve ter olhado para cima e visto a estrela vermelha (seria Marte?) que naquele verão costumava brilhar justamente sobre a casa da Morocha. Teve um impulso, coice no peito, suor na testa. Mas esperou que o assunto mudasse, virando página após página de O Cruzeiro, jogado no sofá-cama da sala. David Nasser, disco voador, Márcia e Maristela, candangos, Odete Lara, coisas assim. Só depois de ter remanchado horas pela casa - outra vez então aquela coisa grossa, aquela coisa porca, aquela coisa furiosa dando voltas dentro dele - resolveu emergir devagarinho das sombras para a luz do poste sobre as pessoas sentadas na calçada.E visto assim, à luz do poste, dos cigarros, vaga-lumes e estrelas, camisa aberta ao peito, as duas mãos enfiadas fundo nos bolsos, parecia tão seguro e decidido que ninguém teria coragem de negar absolutamente nada quando pediu:

- Pai, me empresta o auto?



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